terça-feira, março 28, 2006

“[…] a Fotografia esquiva-se.”

“[…] a Fotografia esquiva-se.”
Roland Barthes Não é sem precaução e timidez que nos sentimos forçados a puxar Barthes e a sua “Câmara Clara” para este texto e esta análise. Descurar o pudor de abusar da palavra de outrem e assumir a dominância do seu pensamento, tanto sobre quem escreve dentro desta moldura (eu) como sobre o artista referente, João Marçal. Quando Barthes parte na tentativa de definir um corpus da Fotografia enfrenta primeiro a dificuldade de ela (cada uma delas, de facto) se apresentar como um Particular absoluto. A sequência de trabalho de Marçal, se não está dentro da Fotografia, insiste pressurosamente em sitiá-la através do assédio aos seus acessórios, marcas e signos. Tudo o que não for fotografia, mas seja da fotografia, poderá ser (embora também possa não ser) um elemento valioso na condução de uma pesquisa sobre um corpo e uma natureza desta técnica de particularização do real. Virando as costas à fotografia ou, melhor, virando a fotografia de costas acabamos por encontrar (aqui o artista extrapola Barthes) uma nota de redundância que finalmente contradiz o pressuposto da Particularidade absoluta: descobrir onde outros não entendem nada uma quantidade determinada de informação que isola o nosso tema enquanto medium. Esta acção de aparente eliminação da imagem tem, para além da óbvia ironia, a virtude de nos pôr face a face com a evidência de um corpus que, ainda que ilusivo e impossível de determinar (como o electrão de Bohr e Schrödinger) é material e previsível. Seremos capazes de, face ao seu verso, dizer que “ali não está uma fotografia”? Atrevendo-me e arriscando o erro (ainda dentro da “Câmara Clara”), a representação desse verso, que poderia ser uma simples anedota, pode chegar a pretender ser um Particular absoluto da Fotografia ela mesma, portanto um Universal dentro dela, onde punctum e studium convergem num raro momento de nítida focagem sobre o seu objecto. No presente trabalho, evocativo de um diaporama de apresentação de férias passadas à família ou amigos, os temas divergem ligeiramente da temática principal da pesquisa que vínhamos reconhecendo no autor, alargando o alcance da discussão à intimidade que cada um desenvolve com o medium em causa. A óbvia falsificação das imagens, a dificuldade de as classificar e reduzir a algo preciso e automaticamente reconhecível enlevam imediatamente a dúvida entre apresentação e representação. A partir de agora estamos num território de perguntas, terrivelmente avesso a respostas, onde a ironia começa a ser entendida como insídia. Muitas vezes distraídos pela televisão, não é frequente estarmos completamente conscientes do enorme peso e poder que a imagem fotográfica detém no nosso quotidiano hodierno; ela está naturalmente espalhada por todo o lado, desde o interior da nossa carteira até, num constante desdobramento, ocupando tudo e tudo, quase pretender revestir o mundo. Hoje, nas cidades, movemo-nos entre fotografias, elas caucionam-nos do alto dos billboards e enfrentam-nos o olhar envidraçadas nos muppis urbanos. Esta obra, extraída das diminutas instruções dos rolos fotográficos, tem o mérito de nos revelar este campo de domínio dos pressupostos da produção de imagem, sobre um dos espaços mais sagrados e publicitados da individualidade dentro do universo da classe média; as férias. O “Momento Kodak” é studium, um consenso sobre a felicidade e a fruição do tempo, a encenação do nosso contentamento nos momentos em que, por férias ou exaltamento, nos encontramos precisamente em punctum, dentro de nós e contentes por nós. Sem querer parecer paranóico (e debaixo desta salvaguarda), a forma como estas instruções para fazer fotografia podem chegar a reproduzir tão fácil e fielmente a estrutura narrativa de uma comum semana de férias, revela-nos a indefinição da fronteira entre o acto de viver e o de representar a vida. Pensar as directivas iconografadas no interior destas caixas como instruções para fazer as suas férias não será um passo assim tão ousado.
O trabalho referido, “Sempre Ausente” de João Marçal,
pode ser visto na galeria MCO, no Porto, até 3 de Maio.