quarta-feira, dezembro 20, 2006

Mudanças

Mudamos de paragens, agora vivemos em http://descripta.wordpress.com, mas continuamos sem pressas.

Being Beings

“Chamam-se caminhos de floresta (Holzwege). Cada um segue separado, mas na mesma floresta. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Lenhadores e guardas-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta.” Martin Heidegger

“A obra de arte abandona o domínio da representação para se tornar «experiência», empirismo transcendental ou ciência do sensível.” Gilles Deleuze

Por Caminhos de Floresta

Não podemos encontrar uma fórmula m

elhor para exprimir e localizar o trabalho de Ricardo Pistola do que a frase de Deleuze (do prólogo de Diferença e Repetição) que acima reproduzimos. De uma morada (e a da pintura é o plano) Pistola constrói um percurso lento e ponderado, motivado intuitivamente por uma disciplina sensível. As suas séries titulam-se com conceitos que definem um modelo de problematização do espaço e cada peç

a, individualmente, representa uma solução experimental e uma possibilidade do desenho. Nestas formulações abstractas a forma e o espaço são duas personagens interdependentes que, convolando uma em torno da outra, animam o processo de pesquisa, que pertence ao artista.

No conjunto das séries de pinturas até ag

ora apresentadas reparamos num trabalho de maiêutica da forma, no sentido em que é contínua a figura de aparecimento do objecto; o quadro é referencial a uma possibilidade de concretização que nunca se assume como absoluta. Para além de seres (coisas, sujeitos) os objectos que animam estas telas são (do estado de ser, predicado). O empirismo em Pistola é, como em Deleuze, o misticismo do conceito e o seu matematismo. A ligação, da forma e da construção da composição a uma produção conceptual at

onal encapsula as telas do artista num mundo pessoal e íntimo, fruto de uma relação, ou diálogo sensível, entre o criador e a obra que, por detrás de uma aparente cortina de hermetismo revela um processo intelectualizado e atento às

questões hodiernas e às discussões que, dos “choques” ou “crises” epistemológicas que pautam a contemporaneidade, se transferem para os nossos quotidianos.

Nas mais sólidas correntes, quer filosóficas quer científicas, a repetição, quando integra em si processos de rejeição e/ou inclusão do erro (aqui, diferença), é o elemento fundamental na criação do novo e é o único caminho qu

e podemos admitir sem recurso a discursos corrompidos por dogma. “Being Beings” tem, enquanto título de exposição, o valor de nos comprometer com a ideia da normalidade do ser sendo seres; de ver a vida, seja ela a dos homens como a dos objectos, como uma irresistível tautologia do ser. Este discurso não pretende ser uma imitação de um processo vivo, é uma elocução gráfica possibilitada por uma estrutura de pensamento que aceita a possibilidade da evolução como um facto incontestável e encara, em detrimento da origem, o salto e a necessidade de problematizar e exp

erimentar a transição, como questão fundamental do conhecimento contemporâneo. Entramos, neste momento, em caminhos de floresta. O território é desconhecido porque não podíamos estar preparados para esta semelhança. Cada passada que damos compromete a possibilidade de regresso, os nossos erros, transformados em derrotas, fizeram tímidas as pretensões que tínhamos quanto à veracidade dos nossos mapas. Ontem estudávamos caminhos e imaginávamos destinos, hoje preocupamo-nos com passos enquanto tentamos perceber a obviedade do trilho.

A Exposição "Being Beings" de Ricardo Pistola está pantente na Galeria 24.b de 16 de Dezembro a 27 de Janeiro de 2007.

Galeria 24.b R. Dr. José da Cunha, 24-B 2780-187 Oeiras

terça-feira, março 28, 2006

DER KLEINSTE KÜNSTLER DER WELT

What’s important then?” Um discurso fracturado, muitas vozes repetindo dúvidas. Dentro desta sociedade secreta, somos todos tímidos na acepção das certezas. E agora, o que é importante? Nada, ao que parece. Tudo, no que se entende. A multiplicação das ferramentas; a confusão entre as nomenclaturas técnicas baralhou de tal forma a nossa perspectivação do mundo que “o melhor é nem falarmos disso”. O consenso emotiva-me; de certa forma, termos deixado de acreditar na singularidade do sítio faz-nos crer que estamos todos juntos. No trabalho de Mariana Santos (só há um, que está no princípio) vemos o corpo desmiolado, tudo cingido ao seu limite de confronto com o resto. Não há sossego porque não estamos sozinhos, nem vamos chegar a estar. Dentro da imensa gritaria, um aturado trabalho de desenho opinativo, caricatura do quotidiano da gente da artista que, farta, é no seu âmago empurrada pelo excesso para fora, até as pessoas serem dobras de limite, como um bolo explodindo de recheio, entre o que já não podem conter e o que não podem vir a ter. O campo do discurso encontra-se tão minado que, como estratégia, apontamos para um lado e dizemos para o outro; passando pelo horror do filme de olhos bem fechados. Depois do primeiro confronto com este excesso, das vozes, das vinhetas, dos desenhos, das invectivas das personagens espalhadas pelo espaço; compreende-se que havia muito material acumulado que cresceu intencionalmente até elevar o tom suficientemente alto, tão alto que obrigasse a autora a finalmente pendurar o trabalho nestas paredes. Esta exposição (a primeira individual) vive num espaço ambíguo entre o que se quer e o que se deseja. Notória já no título do trabalho “Ich werde der kleinste Künstler der Welt” (Vou tornar-me no mais pequeno artista do Mundo) esta ambiguidade usa um relativo de superioridade para inferiorizar o protagonista. Assim está bem, que toda a gente sabe que é mentira. Mas continua; apesar da profusão da palavra através do comentário e da diatribe, estes trabalhos vivem da forma, das tensões explanadas nos cães multicefálicos ou nas pinturas de torres em permanente risco de desagregação, unidas unicamente pela excitação de uma vontade. Encontramos esta contradição coerente em toda a produção; o facto de o trabalho se apresentar como um primeiro capítulo de uma narrativa suspensa e em desafio de continuidade é também, como a divisão da artista em personagens, seu produto. A antinomia entre os discursos das formas e das palavras carrega um pudor de assumir a condição de artista (um querer não sê-lo por medo) e também a vontade de falar, de se apresentar como tal através de um trabalho emocional (desejar sê-lo através do medo) em abertura. Os falos do Will são vontades comprimidas, desejos prontos a explodir e desmoronar o edifício. Desejar cansa, leio-o aqui por todo o lado; desejar muito descola os corpos e as cabeças, tanto que no momento do prémio, por desgaste, é habitual a ruína do corpo. Pelo contrário, querer concentra e não tem fim (quer-se sempre mais); nasce muitas vezes do medo (aqui pressinto-o, o medo do horror do filme que nos fecha os olhos, da constatação ou do pressentimento de um tempo de excesso que é desagregador do nosso mundo). É este medo, sublimado em prazer sórdido pela atracção da desmesura, que motiva e emotiva as figuras retratadas. Ultrapassando-o, Cérbero rasgar-se-ia entre as suas cóleras, as torres esboroariam-se sem clímax, restaria a personagem de “off with her head” divertindo-nos imperativa para fora do nosso centro enquanto se esconde por detrás de uma acusação libatória. Apesar de entre esta fantástica profusão de máscaras ser demasiado fácil o engano, é tempo de obviar isso e avançar com confiança. Ser refém do erro não é o mesmo que estar isolado pelo medo, todas estas personagens anseiam pela continuação da história.

“[…] a Fotografia esquiva-se.”

“[…] a Fotografia esquiva-se.”
Roland Barthes Não é sem precaução e timidez que nos sentimos forçados a puxar Barthes e a sua “Câmara Clara” para este texto e esta análise. Descurar o pudor de abusar da palavra de outrem e assumir a dominância do seu pensamento, tanto sobre quem escreve dentro desta moldura (eu) como sobre o artista referente, João Marçal. Quando Barthes parte na tentativa de definir um corpus da Fotografia enfrenta primeiro a dificuldade de ela (cada uma delas, de facto) se apresentar como um Particular absoluto. A sequência de trabalho de Marçal, se não está dentro da Fotografia, insiste pressurosamente em sitiá-la através do assédio aos seus acessórios, marcas e signos. Tudo o que não for fotografia, mas seja da fotografia, poderá ser (embora também possa não ser) um elemento valioso na condução de uma pesquisa sobre um corpo e uma natureza desta técnica de particularização do real. Virando as costas à fotografia ou, melhor, virando a fotografia de costas acabamos por encontrar (aqui o artista extrapola Barthes) uma nota de redundância que finalmente contradiz o pressuposto da Particularidade absoluta: descobrir onde outros não entendem nada uma quantidade determinada de informação que isola o nosso tema enquanto medium. Esta acção de aparente eliminação da imagem tem, para além da óbvia ironia, a virtude de nos pôr face a face com a evidência de um corpus que, ainda que ilusivo e impossível de determinar (como o electrão de Bohr e Schrödinger) é material e previsível. Seremos capazes de, face ao seu verso, dizer que “ali não está uma fotografia”? Atrevendo-me e arriscando o erro (ainda dentro da “Câmara Clara”), a representação desse verso, que poderia ser uma simples anedota, pode chegar a pretender ser um Particular absoluto da Fotografia ela mesma, portanto um Universal dentro dela, onde punctum e studium convergem num raro momento de nítida focagem sobre o seu objecto. No presente trabalho, evocativo de um diaporama de apresentação de férias passadas à família ou amigos, os temas divergem ligeiramente da temática principal da pesquisa que vínhamos reconhecendo no autor, alargando o alcance da discussão à intimidade que cada um desenvolve com o medium em causa. A óbvia falsificação das imagens, a dificuldade de as classificar e reduzir a algo preciso e automaticamente reconhecível enlevam imediatamente a dúvida entre apresentação e representação. A partir de agora estamos num território de perguntas, terrivelmente avesso a respostas, onde a ironia começa a ser entendida como insídia. Muitas vezes distraídos pela televisão, não é frequente estarmos completamente conscientes do enorme peso e poder que a imagem fotográfica detém no nosso quotidiano hodierno; ela está naturalmente espalhada por todo o lado, desde o interior da nossa carteira até, num constante desdobramento, ocupando tudo e tudo, quase pretender revestir o mundo. Hoje, nas cidades, movemo-nos entre fotografias, elas caucionam-nos do alto dos billboards e enfrentam-nos o olhar envidraçadas nos muppis urbanos. Esta obra, extraída das diminutas instruções dos rolos fotográficos, tem o mérito de nos revelar este campo de domínio dos pressupostos da produção de imagem, sobre um dos espaços mais sagrados e publicitados da individualidade dentro do universo da classe média; as férias. O “Momento Kodak” é studium, um consenso sobre a felicidade e a fruição do tempo, a encenação do nosso contentamento nos momentos em que, por férias ou exaltamento, nos encontramos precisamente em punctum, dentro de nós e contentes por nós. Sem querer parecer paranóico (e debaixo desta salvaguarda), a forma como estas instruções para fazer fotografia podem chegar a reproduzir tão fácil e fielmente a estrutura narrativa de uma comum semana de férias, revela-nos a indefinição da fronteira entre o acto de viver e o de representar a vida. Pensar as directivas iconografadas no interior destas caixas como instruções para fazer as suas férias não será um passo assim tão ousado.
O trabalho referido, “Sempre Ausente” de João Marçal,
pode ser visto na galeria MCO, no Porto, até 3 de Maio.

Tamatave

Madagáscar.

Sozinho, em Madagáscar. Tenho lá um livro; tenho lá um livro. É extremamente incerto tudo que se segue. Neste discurso não tenho lugares vagos para certezas, de estar completo de dúvidas. Tenho um livro sozinho em Madagáscar; não sei como foi lá parar, nem como o poderei ter lá depositado. Madagáscar. Do livro de Bohumil Hrabal, “Uma solidão demasiado ruidosa” na sua tradução portuguesa, pediu-se emprestado o título para esta exposição de Mafalda Santos, agora Mad Woman in the Attic. Apartada das discussões que se geram em torno dos temas da literatura e dos assuntos do livro (apartada mas não desligada) voltamos à arrumação, à esquematização de elementos individuais de um sistema ou campo no objecto de uma construção (carto)gráfica. Temos a novidade de este trabalho não tratar de um campo social, não usar nomes reais do local Ambiente de Trabalho, não ser referente a um plano. Aqui somos sempre obrigados a supor um centro. Embora, enquanto conceito, origem nunca tenha estado ausente, os discursos anteriores obrigam-me a fazer a salvaguarda, o que se afigurava então era a completa impossibilidade de localização exacta da autora, inerente à estrutura do trabalho estava mesmo presente a ideia da sua repetição no mapa. Aqui temos Mafalda Santos, indivisível, como um centro, e somos convidados a fazer todo o percurso de forma a obter o seu acesso; telefonar, entrar, subir as escadas, entrar mesmo e ver. O trabalho é feito na medida de dentro, vemos um mapa, construído emocionalmente a partir das referências sensíveis, depuradas a partir de uma lógica de pura causalidade pessoal e interior (ao contrário de social e exterior, nos anteriores trabalhos) e causa choque o poder ser observada a mesma inintencionalidade, ou insondabilidade, da regra. Prerrogativa da arte, não pretender ser dedutiva: o choque não precisa de ser visto de forma redutora, mas como insidia de uma discussão ainda presente e contemporânea. De uma perspectiva mais fundada na proximidade, tratamos de um trabalho de reprodução de uma estrutura mental do processo da aprendizagem e assimilação de referências através da literatura, de uma bibliogeografia de um campo cultural individual. Não nos esquecemos que a nossa memória é dinâmica; censura, corrige e reposiciona. “Too Loud a Solitude” é um momento efémero da psique da autora; amanhã ou no próximo livro, hoje, tudo será diferente. O problema da ciência com o fenómeno da consciência é precisamente a dificuldade da obtenção de mapas, de estruturas de previsibilidade que nos permitam, sabendo onde está, observar o objecto. Parece-nos que o facto de sermos sujeitos da regra nos impede de olhar para o verbo e saber exactamente a que acção estamos constrangidos, como sistema não temos acesso cognitivo ao nosso princípio e, como a cronologia não é uma ciência, não é exequível utilizá-la em detrimento dessa ausência; sem ferramentas precisamente alfabéticas, ficamos com um vento do qual podemos fazer apenas (em arrastamento) uma representação de um instante nosso. A ligação às obras anteriores é neste ponto consubstanciada, já que eles eram “a representação de um pormenor e um momento que vive sempre na ameaça de logo deixar de ser assim”. Também neste ponto o “choque” e a discussão hodierna sobre a universalidade dos sistemas de medida uma vez que, sendo assim tão comparáveis e sujeitos à subjectividade os nossos diferentes níveis de ligação, ergo organização e compreensão do real (endógeno e exógeno) fica levantada a questão epistemológica da validade de um conhecimento que parte da imposição da nossa regra à organização de todos os sistemas apreendidos como fora dela. Rente, temos a citação de Hrabal e a invocação do fantasma de Haňťa; o concentrador de livros. Não é inocente; nesta sala de Mafalda Santos não temos mais do que a criação de um volume, referenciado, cotado, no qual nos é sempre inacessível o texto. Os livros são usados como matéria-prima do construtor; acontece no instante, a despeito de conteúdo e intenção, colaborarem entre si na expressão de um retrato. A personagem central do livro criava cubos de papel aglomerado, criando uma unidade temática através de uma criteriosa selecção de títulos e de uma fenomenal prensa mecânica. Menos violento, invocando-os sem a necessidade de os destruir, o trabalho presente inverte a ideia da utilização de títulos na construção de um mapa mental da experiência literária de um autor, definindo o negativo da solidez impenetrável dos cubos de Haňťa, quando permite o convite e supõe a entrada do espectador no labiríntico volume das suas referências cruzadas. Dentro, na solução do trabalho, não podíamos escapar a Borges e à sua Biblioteca ab aeterno, a citação da citação, dos volumes eternamente repetidos em si e entre si, da geometrização do universo do livro. No volume e na textura revela-se a irregularidade do sistema, zonas dinâmicas de actividade febril, tensões concordantes ou protestantes entre grupos determinados, espaços vazios recusando conteúdos. Dentro deste interno a literatura vive; convola-se e convolve-se, reescreve-se na constante redefinição das proximidades e promiscuidades, na suspeita de conjuras secretas entre os fantasmas dos escritores sempre desdobrados (para dentro) em títulos e personagens. Desta ideia, Madagáscar, porque tenho lá um livro isolado, sem ponte ou ligação alguma ao continente. Há anos que me persegue (nem sempre com a mesma insistência) a ideia de um livro lido (ou sonhado) que me impressionou tremendamente. Guardo apenas a memória emotiva do impacto que a leitura teve em mim, uma noção vaga do formato do objecto (era assaz pequeno, talvez oitenta páginas) e uma ideia do seu conteúdo tão parca e fantástica que, à excepção do facto de ter essa ilha como palco, me envergonha reproduzi-la aqui. Há anos que pergunto e indago, quando tenho tempo percorro a costa do continente nos locais onde pressinto a ilha fantástica. Algum barco que passe, algum viajante que venha a quem possa inquirir sobre um livro esquisito. Um livro que, por algum acaso e em algum momento, perdeu o interesse no contacto com os habitantes do mundo conhecido e vive hoje num espaço não cartografado, tendo-me deixado com o seu improvável fantasma para ser famoso somente dentro de um reduzido círculo de loucos exploradores. Apesar de toda a ciência, da actividade febril de centenas de milhar de fazedores de mapas, resistem-nos ainda lugares assim. E você, sabe de algum livro em Madagáscar?

A Politeia

Os conceitos de rede e conexão encontram-se, a par com o de realidade, dentro dos campos da nossa linguagem mais afectados pela revolução que deriva dos recentes avanços das tecnologias da comunicação. A banalização de termos como estar ligado, estar em rede, redes públicas e privadas, de trabalho ou domésticas, e a sua integração na linguagem corrente, onde aparecem muitas vezes plasmados a outros campos e em sentido figurativo, teve o efeito de sublinhar ligações e particularidades das estruturas sociais e grupais que, não sendo novas, à força da evidência se tornaram praticamente consensuais. No exemplo da obra de Mafalda Santos, "Ambiente de Trabalho", cujo título nos remete imediatamente para o universo da interface Windows (aqui em português e numa tradução deliciosamente polissémica quando comparada ao seco e estéril "Desktop" original) e que utiliza o seu sistema de organização para, através de uma composição diagramática criar uma imagem simplificada de um momento/lugar de um grupo social e profissional. Sem ambicionar uma posição crítica, atrevo-me a escrever que limitada a uma postura documental, até porque utiliza a linguagem do ordenador, criada visando a universalidade através da redução ao mínimo da possibilidade de subjectividade e divergência. Quando, sobre uma cronologia ou um topos, mentaliza e representa um sistema de pessoas (do qual a autora faz invariavelmente parte) e os seus vínculos, organizando-as através dos seus nomes e títulos de projectos tal como se tratassem de designações de pastas (folder), evidencia a composição e o funcionamento, as proximidades e as diferenças e, finalmente, os limites e fronteiras do ambiente de trabalho da artista, que é, sem mais, o círculo e o campo das últimas gerações de Belas Artes.

A utilização do Alfabeto, e através dele a representação de nomes, veio expor (não arrojo um explicar porque ainda não está provado) o anterior trabalho gráfico sobre estruturas de rede; linhas contrastando contra fundos criando, através da irregularidade do traço, singularidades volumétricas, invocando representações orográficas geometrizadas pela ampliação da unidade mínima da composição (píxel). Nestes casos a rede não é substantiva, não determina ou localiza sujeitos ou objectos, não tem qualquer pretensão cartográfica. As pinturas apresentam-se como resultado de um momento que a artista cataliza, exprimindo um instante e um corte, uma figuração bidimensional de uma realidade que se exprime e opera sobre um número indeterminável de eixos. Esta rede, que achamos óbvia, constrói-se e mantêm-se através dos processos de inscrição, troca, nexo de obrigação mas, para se manter e regular importa e utiliza um número infindável de variáveis. Através da sua representação podemos apenas captar um pormenor e um momento que vive sempre na ameaça de logo deixar de ser assim.

Houve já quem tenha arriscado dizer que o verbo ser é a exacta origem do mundo, uma primeira causa que possibilita e contêm em si toda a gramática da criação, mas na contemporaneidade começam a avolumar-se suspeitas sobre um pretenso campo consciente que indizível porque anterior (ou exterior) ao verbo não deixa contudo de parecer-nos transmissível. A quântica revela-nos que cada partícula do nosso corpo está emparelhada com outra que tanto pode estar mesmo ao seu lado como do outro lado da galáxia e também que estes pares de partículas tem a capacidade de comunicarem o seu estado (spin e carga) instantaneamente uma à outra. A partir deste momento podemos ver e estruturar um Universo em que todas as suas partículas estão ligadas umas às outras através de diversos tipos de ligações formando uma hiper-rede em que a informação flúi sem tempo e na qual é total e totalizante porque está toda e em toda a parte.

Quando falamos deste campo de fronteira do transmissível sem tempo e sem palavra (porque o verbo é tempo) referimos então uma estrutura de rede (network) que é em si, mais do que a acção, a própria história da acção porque ocupa indivisível a plenitude do tempo. Se falamos de física, podemos também ir buscar à poesia a imagem pura daquilo que não cabe nas palavras, mas que se sente e pode ser partilhado como verdade íntima. Um mecanismo de uma arquitectura tão simples que não pode ser sujeito a afastar-se de si no caminho da expressão, alguma coisa que está lá, sempre que não estamos a olhar. Interessa chegar aqui pela razão simples de explorar o sentimento (paranóico ou não) de que a forma como nos ligamos terá ela própria um nexo. Este sentido da ligação pode ser entendido como uma essência da linguagem, estrutura que produz e é produzida pelas nossas redes. A linguagem é a nossa porta para o mundo, os indivíduos ligam-se como neurónios, a nossa estrutura cognitiva processa o pensamento obliquamente entre as dimensões do excesso e do defeito. Já é comummente aceite que o nosso cérebro não nos indica, geralmente, onde está um objecto mas faça uma média e nos indique o sítio onde deveria estar permitindo que seja possível ver coisas, por exemplo, em áreas cegas da nossa visão ou um cachecol no pescoço de alguém simplesmente porque ele estava lá há uma hora e deveria persistir estando. O conceito de obliquidade explica-se pela necessidade de saltar passos para chegar mais rápido a resultados (que é, aliás, um processo indispensável à construção do conhecimento através da memória e da referência). Os sistemas óptimos saltam os passos certos e são, por isso mais competitivos (mas nem sempre mais fiáveis). Na sequência desta linha de pensamento existe a evidência da geometria fractal que, postulando que a parte é igual ao todo ou que, pelo menos, contêm em sim o essencial do corpo de dados da estrutura global, nos faz acreditar que saltar passos não será assim tão perigoso porque a informação está protegida através da repetição. Este tipo de organização e esta facilidade esquemática são utilizadas no trabalho de Mafalda Santos como se de um jogo de côncavo/convexo se tratasse; a abstracção das suas representações permite em simultâneo entender os trabalhos como uma análise macro e micro, sendo que a complexidade com que percepcionamos o sistema é determinada pela distância do observador e pela capacidade dos seus instrumentos de ampliação e redução (excesso e defeito). Aqui importa acrescentar que nos referimos também a "Ambiente de Trabalho" onde a utilização dos nomes se torna redundante quando a pintura é vista a uma certa distância e são apenas percebíveis como traço ou mancha mas onde, existindo um registo da escala, se perde a ambiguidade que caracteriza as outras séries.

segunda-feira, março 27, 2006

mais uma vez: não

A arte não é simples, mas simplifica.
Decorrendo o ano de 2002, um grupo de estudantes de psiquiatria de uma universidade Britânica organizou um trabalho de pesquisa sobre as práticas de diagnóstico nas instituições psiquiátricas Inglesas. Oito voluntários apresentaram-se em oito locais distintos e, nas consultas, produziram discursos diferentes, autónomos e o mais verídicos possível. Nestes discursos a única semelhança era o pormenor, ficcional, de todos eles ouvirem uma voz interior do mesmo sexo que eles, repetindo incessantemente as palavras “vazio” e “máscara”. “Vazio” “Máscara” A todos os oito foi aconselhado o internamento, que alguns aceitaram em períodos que se compreenderam entre os seis dias e as três semanas. Que tipo de estrutura, pessoal ou social, interna ou externa, corre o risco de ser destruída ou danificada pelas palavras “vazio” e “máscara”? Que tipo de defesa existe no nosso meio social (e médico) que as identifica e enquadra de tal maneira exacta? Será que, através delas, podemos subverter o mundo? Como explicar que, no grupo de teste, onde a experiência foi conduzida de forma igual mas substituindo estas duas palavras por outras obtidas aleatoriamente, a ninguém tenha sido aconselhado o internamento? “Vazio” “Máscara” Que é que eu quero dizer com isto? Que é que estas palavras têm a ver com o impulso de negar tudo? Às pessoas que conheço que, por estarem em processo de conflito ou com algum problema do domínio do abstracto, repito com frequência o melhor conselho que conheço: “Desiste”. Este é o conselho que tenho para oferecer a todos os literatos, gente educada, artistas de produtos plásticos. É também o conselho que, olhando para esta exposição, dei à amiga que me encomendou este discurso: “Desiste Mariana, que ninguém compreende o nada.” A consciência da Máscara e o atingimento do Vazio são dois passos fundamentais no caminho subversivo da desistência ou, se quiserem, do desaparecimento, ou, mais completa e radicalmente, do sono. O sono é a forma de negação mais simples, é a mais pura porque não necessita de uma construção intelectual da recusa. Eu durmo. Repetindo até à náusea a palavra Máscara é quase inevitável que o indivíduo acabe por pensar (ou descobrir) que se está a nomear a si próprio. Se optamos por uma visão estruturalista e não cartesiana da consciência, excluindo definitivamente a ridicularia dos discursos sobre a alma e o âmago, abandonando os pilares que postulam uma necessidade de centro e sentido para o mundo, apostando na definição do homem como sistema livre e autónomo, vamos descobrir de base estas duas palavras como a definição dos espaços prioritários da construção da nossa consciência: “Vazio” e “Máscara”. Máscara porque é de facto fino e efémero o rosto que mostramos aos outros, intermutável a face que vemos ao espelho. Muito para além de um sistema de filtros, o fenómeno visível da nossa consciência, tendo apenas a espessura de um milésimo de segundo (acredito que isto tem de ser medido em tempo) é um refinadíssimo sistema de resposta (em diferido) e adaptação aos estímulos exteriores. Como todos os actos sensíveis são responsabilidade desta capa, e somos, todos nós, impossibilitados de olhar para dentro, criamos em nós uma ilusão de escuro. A consciência está, de facto, impossibilitada de identificar os seus próprios processos, não existe forma de iluminar o mecanismo e identificar as peças. A fábrica onde a todo o momento somos gerados é um quarto escuro interior que, materialmente, identificamos com o Vazio. Nesta exposição tenta-se torpemente dizer que não há dentro, que não há centro – acabamos na nossa delicada capa, somos tudo o que existe em nós e estamos nisto terrivelmente sozinhos. E talvez seja assim, há pelo menos a hipótese, de estarmos certos e podermos encontrar a nossa definição na palavra limite. Se cá dentro não existem pensamentos, outras estruturas conscientes ou proto-conscientes, se tudo for pura e simplesmente o mecanismo que gera “isto” – então esse quarto escuro não contém senão máquinas e está, de facto, vazio. O nosso pai é o mecanismo, não há deus, estamos sozinhos. Dentro de nós não existe um código moral e o firmamento perde o seu assombro. Pensar assim, ou dar atenção a este pensamento é, em si, um acto de ruptura. Sem sentido, sem âmago e sem centro, as coisas deixam de colar-se umas às outras, todo o fenómeno tem de ser visto aparente. Os credos e as filosofias caem por terra quando uma pessoa desiste. Desistir, desaparecer ou dormir é entender que não há fim e que os nossos colegas laboram em erro. Cartesianos, todos construímos um edifício que assenta as suas fundações no centro do sentido, um ponto nulo que, muito provavelmente, não existe. Só há limite. Só há limite. Eu estou aqui e estou a desaparecer, traindo-me no meu discurso. Devo ter as pernas a tremer, mas a cada momento sou menos físico e mais relação semântica, a cada segundo sou mais máquina pensante. Quando sair daqui vou cair numa cadeira e morder as orelhas. Tudo se explica, explicando. Este museu é uma caricatura do ridículo, esta exposição uma traição do pensamento da artista, este discurso uma perversão disso tudo, porque pagamos o preço da distância entre nós e o pensamento do público. Estamos sozinhos, não queremos companhia e desejamos para todos os outros exactamente aquilo que temos. Parece-nos que somos livres. Não sei falar em público nem tenho respostas na ponta da língua.
Discurso de abertura da exposição “mais uma vez: não” de Mariana Santos no INTERNATIONALE KUNSTHALLE PORTO I, no espaço PêSSEGOpráSEMANA, no Porto, em 23 de Novembro de 2004