segunda-feira, março 27, 2006

mais uma vez: não

A arte não é simples, mas simplifica.
Decorrendo o ano de 2002, um grupo de estudantes de psiquiatria de uma universidade Britânica organizou um trabalho de pesquisa sobre as práticas de diagnóstico nas instituições psiquiátricas Inglesas. Oito voluntários apresentaram-se em oito locais distintos e, nas consultas, produziram discursos diferentes, autónomos e o mais verídicos possível. Nestes discursos a única semelhança era o pormenor, ficcional, de todos eles ouvirem uma voz interior do mesmo sexo que eles, repetindo incessantemente as palavras “vazio” e “máscara”. “Vazio” “Máscara” A todos os oito foi aconselhado o internamento, que alguns aceitaram em períodos que se compreenderam entre os seis dias e as três semanas. Que tipo de estrutura, pessoal ou social, interna ou externa, corre o risco de ser destruída ou danificada pelas palavras “vazio” e “máscara”? Que tipo de defesa existe no nosso meio social (e médico) que as identifica e enquadra de tal maneira exacta? Será que, através delas, podemos subverter o mundo? Como explicar que, no grupo de teste, onde a experiência foi conduzida de forma igual mas substituindo estas duas palavras por outras obtidas aleatoriamente, a ninguém tenha sido aconselhado o internamento? “Vazio” “Máscara” Que é que eu quero dizer com isto? Que é que estas palavras têm a ver com o impulso de negar tudo? Às pessoas que conheço que, por estarem em processo de conflito ou com algum problema do domínio do abstracto, repito com frequência o melhor conselho que conheço: “Desiste”. Este é o conselho que tenho para oferecer a todos os literatos, gente educada, artistas de produtos plásticos. É também o conselho que, olhando para esta exposição, dei à amiga que me encomendou este discurso: “Desiste Mariana, que ninguém compreende o nada.” A consciência da Máscara e o atingimento do Vazio são dois passos fundamentais no caminho subversivo da desistência ou, se quiserem, do desaparecimento, ou, mais completa e radicalmente, do sono. O sono é a forma de negação mais simples, é a mais pura porque não necessita de uma construção intelectual da recusa. Eu durmo. Repetindo até à náusea a palavra Máscara é quase inevitável que o indivíduo acabe por pensar (ou descobrir) que se está a nomear a si próprio. Se optamos por uma visão estruturalista e não cartesiana da consciência, excluindo definitivamente a ridicularia dos discursos sobre a alma e o âmago, abandonando os pilares que postulam uma necessidade de centro e sentido para o mundo, apostando na definição do homem como sistema livre e autónomo, vamos descobrir de base estas duas palavras como a definição dos espaços prioritários da construção da nossa consciência: “Vazio” e “Máscara”. Máscara porque é de facto fino e efémero o rosto que mostramos aos outros, intermutável a face que vemos ao espelho. Muito para além de um sistema de filtros, o fenómeno visível da nossa consciência, tendo apenas a espessura de um milésimo de segundo (acredito que isto tem de ser medido em tempo) é um refinadíssimo sistema de resposta (em diferido) e adaptação aos estímulos exteriores. Como todos os actos sensíveis são responsabilidade desta capa, e somos, todos nós, impossibilitados de olhar para dentro, criamos em nós uma ilusão de escuro. A consciência está, de facto, impossibilitada de identificar os seus próprios processos, não existe forma de iluminar o mecanismo e identificar as peças. A fábrica onde a todo o momento somos gerados é um quarto escuro interior que, materialmente, identificamos com o Vazio. Nesta exposição tenta-se torpemente dizer que não há dentro, que não há centro – acabamos na nossa delicada capa, somos tudo o que existe em nós e estamos nisto terrivelmente sozinhos. E talvez seja assim, há pelo menos a hipótese, de estarmos certos e podermos encontrar a nossa definição na palavra limite. Se cá dentro não existem pensamentos, outras estruturas conscientes ou proto-conscientes, se tudo for pura e simplesmente o mecanismo que gera “isto” – então esse quarto escuro não contém senão máquinas e está, de facto, vazio. O nosso pai é o mecanismo, não há deus, estamos sozinhos. Dentro de nós não existe um código moral e o firmamento perde o seu assombro. Pensar assim, ou dar atenção a este pensamento é, em si, um acto de ruptura. Sem sentido, sem âmago e sem centro, as coisas deixam de colar-se umas às outras, todo o fenómeno tem de ser visto aparente. Os credos e as filosofias caem por terra quando uma pessoa desiste. Desistir, desaparecer ou dormir é entender que não há fim e que os nossos colegas laboram em erro. Cartesianos, todos construímos um edifício que assenta as suas fundações no centro do sentido, um ponto nulo que, muito provavelmente, não existe. Só há limite. Só há limite. Eu estou aqui e estou a desaparecer, traindo-me no meu discurso. Devo ter as pernas a tremer, mas a cada momento sou menos físico e mais relação semântica, a cada segundo sou mais máquina pensante. Quando sair daqui vou cair numa cadeira e morder as orelhas. Tudo se explica, explicando. Este museu é uma caricatura do ridículo, esta exposição uma traição do pensamento da artista, este discurso uma perversão disso tudo, porque pagamos o preço da distância entre nós e o pensamento do público. Estamos sozinhos, não queremos companhia e desejamos para todos os outros exactamente aquilo que temos. Parece-nos que somos livres. Não sei falar em público nem tenho respostas na ponta da língua.
Discurso de abertura da exposição “mais uma vez: não” de Mariana Santos no INTERNATIONALE KUNSTHALLE PORTO I, no espaço PêSSEGOpráSEMANA, no Porto, em 23 de Novembro de 2004